17 de novembro de 2010

Análise da Obra: A Outra Volta do Parafuso, Henry James

 

Henry James nasceu em Noya York, em 15 de abril de 1843. Sua família vivia em Washington Square, elegante bairro da cidade, onde o garoto passou os primeiros anos de sua infância com seus irmãos, entre eles, William James, filósofo que viria a ser conhecido como fundador do pragmatismo. O ambiente familiar era declaradamente cosmopolita: o pai do escritor, que também se chamava Henry, era um intelectual muito rico - herança de avô que prosperara comercialmente - e acreditava que uma boa educação seria dada pelo contato com o mundo.

No círculo de amigos de seu pai, figuravam os filósofos Ralph Waldo Emerson, Henry Thoreau e o romancista William Thackeray. Ainda pequeno, o jovem Henry partiu para a Europa, onde passou muitos anos estudando em escolas na Inglaterra, França, Genebra e Roma. Durante esses deslocamentos pelo Velho Continente, o menino aproveitava todo tempo livre para ler, devorando bibliotecas, criando um gosto particular por autores como Honoré de Balzac, George Elliot e Nathaniel Hawthorne, que teriam grande influência em sua literatura inicial. Aos 19 anos, de volta à terra natal, James entrou para a Harvard Law School, mas o direito não era sua paixão verdadeira, e aos poucos o autor foi direcionando a vida para seu grande destino: a literatura.

Aos 22 anos, publicou seu primeiro conto, "A Tragedy of Error", e a partir desse momento se dedicaria apenas à literatura. Segundo conta o escritor Fernando Sabino, que traduziu um de seus contos mais geniais, "A fera na selva", quase nada aconteceu na vida do escritor - nada de especial, de excepcional. Mas ele destaca um acidente nas costas, que teria impedido James de se alistar para combater na Guerra Civil (1861-1865) - dois de seus irmãos mais novos se apresentaram e participaram da guerra, um deles salvando-se por um triz durante um combate. E isso, diz Sabino, fez com que Henry James se refugiasse, para sem­pre, na literatura: seu grande combate se deu com as estruturas narrati­vas, o autor foi um dos grandes inventores do flash-back e da narração indireta.


 É ao pé do fogo que Outra volta do parafuso começa. Um grupo de amigos, numa vés­pera de Natal, conversa e relata casos fantásticos, histórias de ar­repiar e dar medo. Um dos par­ticipantes dessa reunião, um tal Douglas, instigado pelo que ou­vira dos amigos, resolveu tirar da gaveta uma narração muito mais arrepiante do que todas as que eles tinham ouvido naquela sala. De­pois de escutar algumas histórias, como a do fantasma de Griffin, que aparecera a uma criança, ele revelou que a sua seria mais emo­cionante: "Se uma criança aumen­ta a emoção da história e dá outra volta ao parafuso, que diriam os senhores de duas crianças?". O clima de suspense não pode­ria ser maior. Com esse diálogo, Henry James praticamente cola o livro na mão do leitor. No en­tanto, todos terão de esperar um pouco pelo tão esperado relato, pois Douglas manda buscá-lo em sua casa, que fica em outra cidade. Sim, tratava-se de uma narrativa escrita, um documento que ele recebera da preceptora de sua irmã, que vivenciou o que será contado.

Quando o manuscrito chega, a história muda de narrador. Ago­ra, quem conta o assombroso episódio de duas crianças e dois fantasmas é a jovem governanta, de 20 anos, enfrentando seu pri­meiro trabalho. Filha de um pá­roco rural, ela seguiria a carreira de preceptora. Um dia, encon­trou um anúncio no jornal. Um homem milionário, sem nenhu­ma paciência para com crianças, procurava alguém para cuidar da educação de seus dois sobri­nhos, Flora e Miles. Eram filhos de seu irmão militar, que havia morrido com a mulher na índia. As crianças moravam em Bly, uma residência da família, no interior, com uma criada, Mrs. Grose. Miles, em idade escolar, tinha acabado de ser expulso da escola por motivos misteriosos.

Os dias em Bly seriam esplên­didos se não fossem os fantasmas de Peter Quint, ex-mordomo da casa, que tinha grande afeição por Miles, e da senhorita Jessel, a ex-preceptora, que morrera logo depois de deixar a casa. A jovem governanta começa a vê-los em vários lugares, como no alto da torre da casa, atrás de uma vidraça ou na escada em caracol. Ela tem essas visões e comenta com Mrs. Grose, que, ao escutar seu relato, reconhece os dois antigos empre­gados e passa a contar a relação deles com as crianças. Para a nar­radora, eles estão ali para se apos­sar das crianças e encaminhá-las para o mal. Como um detetive, ela vai investigando cada aparição, as reações das crianças, que pare­cem ser ambíguas, o motivo que fez Miles ser expulso da escola, etc. Ela age, em outras palavras, com todos os instrumentos da razão investigativa, para des­cobrir, porém, algo que escapa ao mundo racional e adentra o mundo das lendas de terror. Essa parece ser a mola propul­sora do romance, girando entre o racionalismo e o inexplicável, o que tem sua raiz no mito.

James tinha exata noção do que estava fazendo. Inicialmente criou uma narrativa de entretenimento, para o leitor se deleitar com a história. O livro, de fato, nasceu de uma encomenda de uma revista feita por uma empresa comer­cial para ser distribuída no pe­ríodo das festas, que ia do Natal ao Dia de Reis. O autor logo se lembrou de um serão na casa do bispo de Canterbury, quando este lhe contou uma história de duas crianças assombradas por fantas­mas, muna situação similar à do romance. James sabia que havia ali uma narrativa em estado puro, pronta para ser reaproveitada por um escritor e pesquisador das formas literárias como ele. E foi o que fez, percebendo que ali exis­tia algo do conto de fadas puro e simples - "salvo, com efeito, pelo fato de não ter despontado de uma credulidade espontânea e sem limites, mas consciente e cul­tivada", como escreveu em seus comentários ao romance.

O autor soltou, mas não intei­ramente, a corda da imaginação ao criar fantasmas diferentes de todos os que existiam na literatura até então, ao colocar duas crianças lindas e inteligentes, que gostavam de fazer encenações teatrais com sua governanta, no centro da ação e ao entregar a narrativa para uma jovem mulher, encantada com o homem que a contratou, com as crianças que teria de cuidar quase como uma mãe, suscetível à vida das crenças populares e, ao mes­mo tempo, racional e culta. Tudo é belo na construção do livro, todos os elementos alimentam a imaginação do leitor.

Como em muitas obras de James, Outra volta do parafuso parece driblar a possibilidade de uma leitura fechada, única. Como dizia Jorge Luis Borges, Henry James era mestre em criar "situações deliberadamente ambíguas e complexas, capazes de indefinidas e quase infinitas leituras. Eram livros, dizia escritor argentino, para o moiroso deleite da análise.

O núcleo central do romance é com­posto de poucos personagens: a narradora, Mrs. Grose, criada da casa, as crianças (Flora e Miles) e os dois fantasmas (Peter Quint e srta. Jessel). Há um outro ain­da, que passa rapidamente pelo romance, mas permanece do começo ao fim como uma som­bra, ou ainda, como um fan­tasma real, o tio das crianças, homem muito rico, solteiro, galanteador, que contrata a governanta com um estranho pedido: que ela jamais o inco­mode, em momento algum. Não importa o que acontecer, ele quer ser poupado.

Sua imagem atravessa o livro como um enigma sem solução; o mesmo enigma que o leitor aos poucos vai encontrando nas crianças, mas que é afasta­do pela pureza infantil. Se não for esticar demasiadamente a corda de um romance escrito com a intenção de entreter o leitor, esse enigma poderia ser o de classe social: os três per­sonagens estão na mesma es­fera de poder. Eles mandam e não podem ser contestados em seu poder de mando. É a lei dos mais ricos. Tanto é que quando a própria preceptora, por sua posição, tenta cruzar esse limi­te, o jovem Miles alerta sobre as diferenças que os separam socialmente.

Chega a ser interessante pensar, por essa via, que os dois fantasmas são de ex-em-pregados da casa, atraindo as crianças para o mundo deles. Cabe à nova governanta man­ter a ordem, para não deses­tabilizar a vida dessa estranha família. No jogo intenso de contradições, ela tem de man­ter a ordem de uma família que, afinal, já não existe en­quanto família, já se esfarelou na vida moderna. Mantém as propriedades, o dinheiro, o prestígio, mas não encontra mais unidade. Não caberia aqui comentar o final do ro­mance, outro enigma, ou ou­tra torção no parafuso, lança­do por James no caminho do leitor. Mas ainda se pode pen­sar num possível delírio da narradora, no seu afã de man­ter a ordem estabelecida e, de certa forma, não participar de sua própria classe social, a dos assalariados.

o resultado obtido por James em suas narrativas é sempre nuançado, "pois um personagem, através de seu en­tendimento e de sua visão, não é capaz de iluminar o quadro inteiro, mas tão somente par­te dele. Vastas zonas afundam, assim, nas sombras - e, nesse terreno sombrio,  instalam-se a ambiguidade, a incerteza, a desconfiança e a dúvida". E nessa sombra de difícil des­linde que o leitor penetra ao ler essa narrativa. E nela en­contra o prazer de se envolver numa história que é de assom­bro, causa medo e terror, mas que, como um fantasma, está no liame entre dois mundos: o do realismo, com suas relações diretas com a experiência so­cial inglesa, e o do puro voo da imaginação popular.

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